nem cinza é fim

Ninguém se alegra com pó – fora de consideração estão “pós” que a legalidade desconhece. Quanta discussão familiar à volta do pó… até pagamos para nos tirarem o pó de casa. Tão leve e tão nada, e tão central na economia de cada um, no que consome de tempo e dinheiro. Como é que tão pouco mexe com tanto?…

Seria pouco repetir anualmente um gesto que aproxima a condição humana do pó. Não precisaríamos de uma humilhação anual se no centro não estivesse algo precioso. É-nos segredado nestes dias: és pó amado, lembra-te! És pó amado, acredita! Da mesma forma que a nossa vida mudou ao ouvir “amo-te”, naquela vez, também todos os anos queremos lembrar o que só o amor é capaz de fazer: transformar.

A cinza como símbolo de preparação da páscoa, parece-me bem sugestivo. Recebemos pó de cinza dias antes de nos pasmarmos mais uma vez com a vida em forma de rebento. Lembramos juntos que nem a cinza é fim. Nada na nossa fragilidade está verdadeiramente destruído que não possa ser levantado. E só o amor é capaz de erguer; só o saber-se e sentir-se amado consegue levantar.

Os que imitam o nazareno Jesus são “erguedores”, e nesse exercício de fragilidade oferecida experimentam a cada passo que nem a cinza é o fim, espantam-se com o que o amor é capaz de fazer até com pó.

a abundância treina-se

O texto do evangelho que lemos em comunidade no dia de carnaval (Marcos 10,28-31), pode bem ser um caminho de quaresma. Os discípulos de Jesus vivem entre o muito e o tudo. A vida exige-nos muito: desde a exigência profissional, aos compromissos que assumimos e honramos, às obrigações de ordem social, às convenções e conveniências… Tudo isso cabe no que a escritura chama “lei”. A insistência de Jesus presente nos evangelhos prende-se com “tudo”. Por muitas vezes, Jesus elogia o “tudo”, pede “tudo”, fala de “tudo”, leva outros a quererem dar “tudo”.

Vivemos entre o muito e o tudo, entre o esforço e a abundância.

Sabemos que o amor comporta esforço, mas sabemos bem que o amor só se tece no exagero, na desmesura, no dom, no tudo.

Pedro diz a Jesus: “Olha que nós deixámos tudo para te seguir”. Jesus parece desconversar. Poderia ter validado esta exclamação de Pedro, neste momento de firmeza. Mas vai esperar um momento em que Pedro se reconhece frágil para dizer-lhe que sobre essa pedra edificará a sua igreja.

Entre o muito das obrigações e o tudo do dom amoroso de mim, joga-se a minha liberdade, inscrita na minha profunda fragilidade.

A quaresma é um tempo prático de exercício criativo de ampliarmos os nossos gestos e escolhas do “muito” ao “tudo”.

Contamos com a nossa inteligência e a nossa consciência e a inspiração do nosso amante ausente, o nazareno Jesus que veio para termos vida, e vida em abundância!